Há já bons anos, houve um ano em que (quase) não choveu. Foi o 3° ano do pós-independência. Um ano antes, traçava-se o principal objectivo do ano seguinte e, bem no discurso de fim-de-ano, baptizavam-se os nascentes 365 dias com um lema: 1978 - Ano da Agricultura. E não choveu!
Lembro-me, ainda garotinho, do sofrimento de nossas mães carregando a mandioca até às "ndungas" lá aonde houvesse sobras de água em um rio que até então fora de curso permanente. E a mandioca apodreceu debaixo da terra ressequida. Outra era colhida para consumo tinha a forma esponjosa. As mandioqueiras secaram. Kizaka não havia, tirando na kitaka (horta) aonde as mamãs acorreram, às pressas, para salvar o que era possível da sementeira e saciar a fome que é e sempre foi inclemente. Os mais velhos recorreram, rápidos, aos "livros" guardados em suas memórias. Viajaram ao ano _xis_ da sua memória e rebuscaram algumas práticas de escape utilizadas em situações homólogas e a elas incrementaram novas ideias.
Fizeram pequenos diques para aproveitar o fio d'água que restava. Foram agricultar nos vales, zonas baixas anteriormente propensas a inundações, e aproveitaram a pouca água que se acumulava durante a noite para a rega matinal.
Eventualmente soubessem, talvez não. Os vales são locais de deposição de matéria orgânica, terra fértil por natureza, proporcionando boas colheitas e abundância.
Lembro ainda do peixe, salvação nossa enquanto _conduto_. Como todos seguíamos o curso do rio e o fiozito d'água até às represas naturais e artificiais (estas últimas feitas pelo engenho criativo derivado da crise), os bagres, sobretudo, misturavam-se às mandiocas em processo de demolha na ndunga, sendo apanhados à mão enquanto se retirava a mandioca demolhada para a seca e feitura da fuba. Outros peixes encontravam conforto nas represas e eram apanhados no processo de rega, quando a água minguasse. Só a caça era farta. Os pontos em que se achasse rastilhos de água eram de encontro entre homens famintos e animais sedentos. E tudo ficava mais fácil ao caçador que, tomando medidas de segurança para não ser caçado por leões e outras feras, abatia os animais possíveis para a sua dieta. Muita carne era trocada por cereais saídos de longe. E assim nos alimentámos naquele ano em que não houve chuva (quase) nenhuma. Foi no Ano da Agricultura.
Seja em tempo de chuvas fartas ou escassas, o aproveitamento dos vales, repletos de húmus, é crucial para a obtenção de boas colheitas, assim como a construção de pequenos diques e açudes para a reserva de água que pode ser usada para a irrigação. Plantas permanentemente regadas, que não dependam da caridade dos céus, têm mais saúde e proporcionam melhores rendimentos.
Pense nisso!
Publicado pelo JE&F de 27.09.24
